quarta-feira, 4 de julho de 2012

Democraduras


Países com longas ditaduras não passam simplesmente da ditadura à democracia, apagando seu passado e escrevendo a nova página da sua história como se fosse uma página em branco. Até mesmo porque costumam ser transições institucionais, pacíficas, não rupturas radicais. O passado pesa fortemente sobre as novas democracias, condicionando seu futuro fortemente.

Tem acontecido como regra nos países latino-americanos. O próprio Brasil foi vítima desses condicionamentos. Incapaz de obter os 2/3 do Congresso para convocar eleições diretas para presidente – que teriam em Ulysses Guimaraes seu mais forte candidato a ser o primeiro civil a presidir o Brasil desde 1964 -, o país se viu às voltas com mais um pacto de elite na sua história, configurado no Colégio Eleitoral, fundado num acordo entre o novo – as forças democráticas, constituídas na oposição à ditadura – e o velho – advindas da ditadura, para somar-se ao novo regime, quando o antigo se esboroava. 

O preço pago não foi barato. Ao invés da democratização das profundas estruturas de poder consolidadas pela ditadura – no campo, nos bancos, nas grandes corporações industriais e comerciais, nos meios de comunicação -, o novo regime – sob a presidência do até pouco tempo antes presidente do partido da ditadura – limitou-se, bem ao estilo liberal, à democratização institucional. O país profundo seguiu igual, até piorou em alguns aspectos, como nos meios de comunicação, em que o ministro das comunicações, ACM, encarregou-se de terminar a monopolização da mídia.

Como resultado, tivemos uma redemocratização institucional, mas o Brasil não se democratizou do ponto de vista econômico, social e cultural. Continuamos - até o governo Lula – a ser o país mais desigual do continente mais desigual.

Essas são analises que podem ser estendidas a outros países do continente que passaram por ditaduras.

O Egito e o Paraguai vivem situações que podem ser comparadas com essa. Durante as longas ditaduras que os dois países sofreram, só foi tolerada a oposição moderada, que compactuava com a ditadura: o Partido Liberal no Paraguai, a Irmandade Muçulmana no Egito. Quando termina a ditadura, os partidos ligados ao regime e essas forças de oposição estão nas melhores condições para protagonizar o que deveria ser a transição para a democracia.

No Egito, os dois candidatos provinham dessas forças: um ex-ministro do Mubarak e um candidato muçulmano. No Paraguai o Congresso continua a ser dominado pelos partidos Colorado e Liberal. Foram estes dois partidos que se uniram – juntando-se aos oviedistas, partidários de Lino Oviedo, caudilho tradicional – para derrubar Fernando Lugo em processo expeditivo.

No Brasil foi preciso passar 17 anos de terminada a ditadura para que o PT chegasse a ter forças para conquistar a presidência.

Enquanto isso, existem democraduras, cruzamento de democracia com ditadura.

Postado por Emir Sader às 17:05

América Latina, 50 anos depois


Em 1962, os EUA impuseram à OEA a expulsão de Cuba desse organismo. A moção conseguiu 14 votos a favor, o voto contrario de Cuba e 6 abstençoes (Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Equador e Mexico). Mais tarde, já com o golpe militar de 1964 no Brasil, os EUA impuseram a ruptura de relações com Cuba, medida que foi seguida de forma subserviente por todos os governos do continente, menos o México.


Tudo isso se dava paralelamente à tentativa fracassada de invasão de Cuba por tropas mercenárias coordenadas pelos EUA, com o apoio direto da Nicarágua de Somoza e da Republica Dominicana de Trujillo, em 1961, e do cerco militar a Cuba, em 1962.



Para termos uma ideia de como mudou o continente desde então, praticamente todos os países retomaram relações com Cuba, a OEA decidiu convidar Cuba de volta ao organismo, mas o governo cubano se recusou ao que Fidel chamou de Ministério das Colônias dos EUA. E, ao mesmo tempo, o continente dispõe de organismos sem a participação dos EUA, como o Mercosul, a Unasul, o Banco do Sul, o Conselho Sulamericano de Defesa, a Comunidade de Estados Latinoamericanos. Já não existirão reuniões da Comunidade Ibero Americana sem a participação de Cuba.
A OEA sobrevive, mas com representação e legitimidade cada vez menores.



Em situações de crise como a do Paraguai, o Mercosul e a Unasul decidiram suspender a participação do governo golpista, em decorrência da cláusula democrática, acordada pelos governos que compõem esses organismos. Em outras, como o conflito da Colombia com o Equador e a Venezuela, o Conselho Sulamericano de Defesa encontrou a solução politica. 



Os tempos passaram e mudaram, os EUA têm cada vez menos voz e aliados no continente. Como cantava Cuba:



“Con OEA o sin OEA, y aganamos la pelea".

Postado por Emir Sader às 16:19

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O dedo do Lula



A sociedade brasileira teve sempre a discriminação como um dos seus pilares. A escravidão, que desqualificava, ao mesmo tempo, os negros e o trabalho – atividade de uma raça considerada inferior – foi constitutiva do Brasil, como economia, como estratificação social e como ideologia.

Uma sociedade que nunca foi majoritariamente branca, teve sempre como ideologia dominante a da elite branca, Sempre presidiram o país, ocuparam os cargos mais importantes nas FFAA, nos bancos, nos ministérios, na direção das grandes empresas, na mídia, na direção dos clubes – em todos os lugares em que se concentra o poder na sociedade, estiveram sempre os brancos.

A elite paulista representa melhor do que qualquer outro setor, esse ranço racista. Nunca assimilaram a Revoluçao de 30, menos ainda o governo do Getúlio. Foram derrotados sistematicamente pelo Getulio e pelos candidatos que ele apoiou. Atribuíam essa derrota aos “marmiteiros”- expressão depreciativa que a direita tinha para os trabalhadores, uma forma explicita de preconceito de classe.

A ideologia separatista de 1932 – que considerava São Paulo “a locomotiva da nação”, o setor dinâmico e trabalhador, que arrastava os vagões preguiçosos e atrasados dos outros estados – nunca deixou de ser o sentimento dominante da elite paulista em relação ao resto do Brasil. Os trabalhadores imigrantes, que construíram a riqueza de Sao Paulo, eram todos “baianos” ou “cabeças chatas”, trabalhadores que sobreviviam morando nas construções – como o personagem que comia gilete, da música do Vinicius e do Carlos Lira, cantada pelo Ari Toledo, com o sugestivo nome de pau-de-arara, outra denominação para os imigrantes nordestinos em Sao Paulo.

A elite paulista foi protagonista essencial nas marchas das senhoras com a igreja e a mídia, que prepararam o clima para o golpe militar e o apoiaram, incluindo o mesmo tipo de campanha de 1932, com doações de joias e outros bens para a “salvação do Brasil”- de que os militares da ditadura eram os agentes salvadores.

Terminada a ditadura, tiveram que conviver com o Lula como líder popular e o Partido dos Trabalhadores, para o qual canalizaram seu ódio de classe e seu racismo. Lula é o personagem preferencial desses sentimentos, porque sintetiza os aspectos que a elite paulista mais detesta: nordestino, não branco, operário, esquerdista, líder popular.

Não bastasse sua imagem de nordestino, de trabalhador, sua linguagem, seu caráter, está sua mão: Lula perdeu um dedo não em um jet-sky, mas na máquina, como operário metalúrgico, em um dos tantos acidentes de trabalho cotidianos, produto da super exploração dos trabalhadores. O dedo de uma mão de operário, acostumado a produzir, a trabalhar na máquina, a viver do seu próprio trabalho, a lutar, a resistir, a organizar os trabalhadores, a batalhar por seus interesses. Está inscrito no corpo do Lula, nos seus gestos, nas suas mãos, sua origem de classe. É insuportável para o racismo da elite paulista.

Essa elite racista teve que conviver com o sucesso dos governos Lula, depois do fracasso do seu queridinho – FHC, que saiu enxotado da presidência – e da sua sucessora, a Dilma. Tem que conviver com a ascensão social dos trabalhadores, dos nordestinos, dos não brancos, da vitória da esquerda, do PT, do Lula, do povo.

O ódio a Lula é um ódio de classe, vem do profundo da burguesia paulista e de setores de classe média que assumem os valores dessa burguesia. O anti-petismo é expressão disso. Os tucanos são sua representação política.
Da discriminação, do racismo, do pânico diante das ascensão das classes populares, do seu desalojo da direção do Estado, que sempre tinham exercido sem contrapontos. Os Cansei, a mídia paulista, os moradores dos Jardins, os adeptos do FHC, do Serra, do Gilmar, dos otavinhos – derrotados, desesperados, racistas, decadentes.
Postado por Emir Sader às 15:46

fonte: www.cartamaior.com.br